AMOR e AIDS
Corria o ano de 1997, quando Deus nos levou à Itália em cumprimento a um chamado de 17 anos atrás. Eu, meu esposo e nossos filhos partimos de Brasília rumo à famosa cidade eterna ou cidade dos mártires, Roma. Do aeroporto seguimos para a Estação de Trem direto a Milão, lá ficaríamos na casa de um missionário brasileiro de 15 a 20 dias enquanto buscaríamos uma casa em Roma.
Em Milão conhecemos muitos brasileiros residentes casados com italianos, e fizemos grandes amizades. Um certo dia estávamos na igreja, meu esposo, Pr. Inezilo pregava, quando ao final, após fazer um apelo para quem quisesse receber cura divina, várias pessoas vieram à frente, entre elas, um jovem alto, claro, bem afeiçoado e muito bem vestido, com um lindo cachecol que se destacava no look, quando o vimos o Espírito me mostrou que ele tinha uma grave enfermidade de origem sexual. Fiquei preocupada. Como um jovem aparentemente são poderia estar enfermo de algo tão grave? Fomos pra casa e surgiu a pergunta: quem seria aquele jovem do cachecol? Alguém disse:
- É o A.M.
Aquele jovem tornou-se amigo de nossos filhos, formaram um lindo grupo de louvor, pois ele também cantava muito bem e amava louvar ao Senhor. A.M era de nacionalidade chilena, mas quando ainda menino os pais imigraram para o Brasil. Sofreu muito na infância, viveu em um lar sem Deus e sem princípios morais, éticos e sociais. Foi violentado aos 12 anos pelo próprio pai, e a partir disso passou a odiá-lo, ficou revoltado e mundano. Apesar de tudo era estudioso e extremamente inteligente (falava vários idiomas), mudou para a Itália onde iria trabalhar, porém sem base familiar, pois o lar é a “bigorna” onde é batido e aperfeiçoado o nosso caráter. A.M não teve essa chance e, assim, não foi difícil para ele se prostituir para viver naquele país, amealhou algumas conquistas materiais e financeiras até o dia em que ele ouviu o evangelho e conheceu Jesus.
Dificuldades, guerras espirituais, doenças e decepções. A.M viajava muito, todas as férias ele ia conhecer um país diferente, como disse, ele falava, fluentemente, vários idiomas, dentre eles inglês, francês, alemão, português, holandês, italiano e outros dialetos. Começaram a surgir às primeiras dificuldades financeiras e alguns sintomas como tontura, magreza, falta de apetite, etc. Pesquisas foram feitas e...finalmente o diagnóstico: Portador de HIV. Por que falo decepções? Porque nós evangélicos ainda não estamos preparados para lidar com pessoas como A.M que tinha uma vida nos padrões diferentes e ainda por cima, portador de uma doença, como a AIDS. As pessoas diziam:
- Cuidado com essa amizade, esse jovem é aidético, é perigoso!
Chegou o dia do nosso regresso à Roma, a igreja toda nos despedia com lágrimas, pois fizemos uma amizade sólida no Senhor após um mês e alguns dias de estada ali. Por força das circunstâncias (durante esse tempo fomos assaltados e roubaram todos os nossos documentos e o dinheiro que levávamos), tínhamos vários volumes de bagagens, o tempo estava frio e muito chuvoso, A.M disse:
- Eu vou com vocês para ajudar a levar as bagagens e a instalarem-se na nova residência.
O trem parava a cabine na Estação e o nosso vagão, o décimo terceiro, teria que ser alcançado correndo com a bagagem na cabeça em meio à chuva e ao frio. Nós não tínhamos sapatos e nem roupas adequadas para o frio, assim mesmo tínhamos que ir margeando o trilho até chegar ao nosso vagão (um dos nossos ficava cuidando da nossa bagagem enquanto os demais corriam para buscar os outros volumes). O A.M sempre conosco, vivendo toda essa odisséia, coisa que ele não podia fazer. Chegou, inclusive, a adoecer. Imagino que por isso, essa atitude chegou a ser cantada “amigo é coisa para se guardar embaixo de sete chaves, dentro do coração”.
O tempo passou e o seu estado de saúde foi piorando. Meu filho Kleber, ao tomar conhecimento da gravidade me disse:
- Mãe, o A.M está muito mal e está só, o que nós podemos fazer por ele?
Falei com meu esposo e logo depois pedi ao Kleber que fosse a Milão trazê-lo para nossa casa em Roma. Ao chegar lá, A.M não tinha mais força para andar sozinho, Kleber disse que só havia uma panela de arroz no fogão que já estava com fungos, como uma floresta, isso indicava que ele estava sem se alimentar, pois não tinha forças para fazer a comida.
Volto aqui a um ponto interessante: Kareen, minha filha, havia tido um sonho em que ela cuidava de um rebanho de ovelhas e uma das ovelhas era muito fraquinha, quase não tinha lã, andava devagar e estava encolhidinha, ela pegou-a nos braços, pois viu que estava muito fragilizada. Kareen possuía uma cesta com pães doces e salgados e ela dava a essa ovelha partículas pequenas de pão doce. Logo depois, resolveu também dar pão salgado, quando eu lhe disse:
- Não minha filha, ela ainda não pode comer pão salgado...
O mais impressionante disso tudo é que ao olhar para a cara daquela ovelhinha, ela viu o rosto do A.M. Esse sonho contribuiu com a minha decisão de mandar buscá-lo.
O Kleber tocava, as meninas conversavam com ele, cantavam. Para uma pessoa enferma de AIDS, um toque é muito importante. Enquanto ele fugia de qualquer contato físico com todas as pessoas - até mesmo como uma forma de se defender da maior doença: a discriminação, nós o puxávamos em nossa direção e o abraçávamos com carinho para que ele pudesse sentir o quanto era importante (só não o tocávamos quando ele estava com erupções na pele devido à doença, aí não podíamos realmente, ele até fazia tudo para não nos ver para evitar o contato, questão de cuidado da nossa parte e consciência da parte dele). Era uma festa, para nós, tê-lo em casa. Eu sempre fazia uma sopinha bem gostosa. Um dia ele me disse:
- Irmã Rosa, essa sopinha me lembra muito a comida da minha mãe (ele não a viu mais, desde que saiu de casa há 15 anos).
Como boa paraense, fazia também o caribé, pois farinha fina tinha em todo lugar. O certo é que ele se recuperou logo, ficou corado, disposto e retornou a Milão, pois lá ele recebia ajuda dada pelo Governo para os doentes como ele.
Retornamos ao Brasil e fomos visitados algumas vezes por ele, até que em sua última visita, estava muito magro e doente. Os contatos foram rareando. Nessa época, Kézia, minha outra filha, foi morar na Noruega e lá teve notícias de Milão, de que A.M estava muito mal, já no isolamento de doentes terminais de AIDS. Ela me telefonou dizendo que não viria passar as suas férias no Brasil, pois pretendia ir a Milão visitar A.M. Foi algo chocante para ela saber que ele estava muito magro. Os amigos mandaram buscar a sua mãe no Brasil para cuidar dele, ela também estava muito sofrida, pois não conhecia ninguém, não falava a língua, o estado de saúde do filho estava muito grave e os italianos não tinham paciência de lhe explicar o estado de saúde dele. Kézia lhe prestou alguma ajuda e em seguida me telefonou pedindo que ligasse para o A.M e para sua mãe.
Uma manhã, liguei, falei com a mãe dele e pedi que passasse o celular para o A.M, ele já não podia falar, só concordava, falei-lhe coisas lindas do céu e lhe disse:
- A.M, vou cantar um hino para você, é como se Jesus, aquele que você ama, estivesse cantando para você, e cantei a canção “Estou contigo” de Shirley Carvalhaes. Ao terminar de cantar, ele já não me respondia, eu só ouvia o choro de alguém, que com certeza era sua mãe. A.M partiu.
Eu creio ter sido propósito de Deus levá-lo, Deus poderia curá-lo, mas não o fez, Sua vontade é soberana. Vou contar-te um fato: um certo dia, viajávamos de Roma para Milão, veja bem, Milão é uma imensa metrópole, quando o nosso carro parou em um cruzamento, quem eu vejo? A.M...elegantemente vestido em pé na esquina, eu pensei, hoje não é dia de culto e o que estaria fazendo A.M? Seria uma simples especulação, se o mesmo espírito que me falou quando ele recebeu oração naquela noite na igreja não me tivesse dito: ele não será curado porque não tem forças para resistir ao apelo de sua carne. Desde então, eu sabia que Jesus iria levar o nosso A.M.
Após sua morte, a Kézia nos contou coisas que o A.M havia confessado a ela e que havia pedido, por favor, só contasse para nós depois que ele morresse. A.M havia confessado que sabia que Deus não ia curá-lo porque se o fizesse, talvez ele não resistisse às tentações, mas, disse que se Deus o levasse naquele momento, tinha a certeza de que iria ao céu, pois havia conseguido, como um bom guerreiro, resistir a tudo. Ele disse:
- Kézia, não fica triste, Deus é fiel e eu sei que vai me recompensar por também ter sido fiel a Ele. Se eu morrer agora, sei que vou ser recebido por Ele nos céus porque lutei contra minha própria carne e venci!
Missionária Rosa Cunha
Obs: A.M é uma sigla fictícia para o personagem real dessa história.
Obs: A.M é uma sigla fictícia para o personagem real dessa história.
Fonte www.atosepalavras.com.br